terça-feira, 22 de maio de 2007

Chiquinha Gonzaga

Fonte: Palcos e Salões - Colectaneas Rabello, 1924, Vol 1
A Vovó dos Artistas (1)

Chiquinha Gonzaga foi um dos maiores valores femininos do Brasil. Na vida brilhante dessa grande artista há uma força recôndita a impeli-la para as iniciativas vitoriosas. Chiquinha Gonzaga foi o primeiro nome feminino que se popularizou na música brasileira. Afrontando a opinião severa da época, foi a primeira mulher que escreveu para teatro.

Animada pelos sucessos de suas partituras, para corresponder à homenagem do público que a festejava, regeu a orquestra do teatro conjuntamente com uma banda do teatro conjuntamente com uma banda de música militar, num espetáculo do Theatro Lyrico, em 1885. Tornou-se, daí em diante, a primeira maestrina brasileira.

Numa de suas viagens à Europa, reconhecida pelos apreciadores de suas músicas, diariamente aplaudidas em Lisboa na interpretação de Os Geraldos, cançonetistas do Rio antigo, viu-se na contingência de musicar libretos dos mais festejados teatrólogos portugueses. Foi assim a primeira mulher brasileira que se exibiu no estrangeiro como compositora teatral.

Completamente liberta de preconceitos, inteligente, bonita, elegante, sedutora mesmo, mas pobre, criou um tipo interessante, quando surgiu pela primeira vez de lenço à cabeça em lugar de chapéu. Foi além: desejando ouvir uma famosa cantora lírica e tendo verba, assistiu ao espetáculo das “torrinhas”. O fato, inédito no Rio, devia provocar escândalo. Ao contrário, Chiquinha, ao ser percebida, foi ovacionada pelos seus admiradores.

E, para dar um fecho de ouro aos seus ineditismos brilhantes, Chiquinha escreveu aos oitenta e três anos a sua última partitura, batendo o recorde de compositora. Mas isso não se deu só em relação à idade, também o foi em relação à música e quiçá em quantidade.

Chiquinha Gonzaga tem mais para mais de duas mil composições, desde as peças de maior responsabilidade aos maxixes malandros, verdadeira gíria sonora carioca. Compos setenta e seis partituras teatrais, apenas cinco peças inéditas e uma grande maioria de estrondosos sucessos.

Bem mereceu a popularidade que goza no Brasil e em Portugal. Não foi fácil, porém, a escalada para a glória. Ela mesma, quando determinou o epitáfio, confessou que sofreu e chorou, alegrando o povo de sua terra.

Quanta amargura devia ter sentido quando, depois de escrever a sua primeira partitura, a de Viagem ao Parnaso, de Arthur Azevedo, ouviu, de mistura com o elogio, a sentença cruel do empresário: Mulher não pode compor para teatro. Lágrimas benditas as que derramou a gloriosa artista. Deram-lhe forças para novas tentativas que foram coroadas de êxito retumbante.

Na história do teatro popular brasileiro fulge o nome de Chiquinha Gonzaga. O caso mais sensacional foi o do “Forrobodó”. Teve mil e quinhentas representações seguidas. Peça de novatos no tempo, Luiz Peixoto, Carlos Bittencourt, que tiveram a colaboração de Raul Pederneiras e a música de Chiquinha Gonzaga. A revista interessantíssima era de um humorismo irresistível. A montagem, porém, foi descuidada: custou apenas cento e vinte mil reis. Havia em todos, desde a estrela ao carpinteiro, uma grande má vontade. Ninguém esperava nada da peça. O próprio Alfredo Silva, ator querido, antes de subir o pano, lançou nos bastidores uma frase chula à peça. Só Chiquinha confiava no “Forrobodó”.Tinha certeza de que a revista seria um “Forrobodó de massadas, gostoso como ele só...”, por isso retrucou aos artistas: - Quem sabe se esse “Forrobodó” não lhe vai dar muito dinheiro! E deu mesmo, ao empresário e artistas, porque os autores, sem a regulamentação dos direitos autorais, não chegaram a ganhar cem mil réis.

Na estréia do “Não Venhas” de Baptista Coelho, o João Phoca, musicada pela maestrina, um autor despeitado pela preferência da exibição encomendara a claque uma grande pateada. Mal subiu o pano começaram as hostilidades que foram aumentando a ponto ser perturbada a representação. Raul Pederneiras, que estava na platéia, pulou no palco, juntamente com outros rapazes e, fazendo com que Chiquinha trouxesse à cena o autor, forçou a claque a desistir dos apupos sob aplausos da platéia. De Raul musicou Chiquinha vários números da revista “O Esfolado”, levada à cena em 1902.

A crítica aos votos eleitorais dos defuntos, tão usados pela politicagem da época, viveu no número “Meu defunto marido, o Garcia”, musicado por Chiquinha e interpretado por Éster Bergerath, que teve de voltar à cena várias vezes, tantos foram os aplausos.

“Jandyra”, linda peça regional sul-riograndense, de Rubem Gill e Alfredo Breda, na qual estreou Ítala Ferreira, comediante dos nossos dias, é uma original trama em estilo gaúcho, recompondo a vida agreste das cochilas. Com sugestiva música de Chiquinha alcançou grande sucesso no Recreio.

A famosa musicista não compôs apenas partituras para revistas ou fantasias musicadas: “As Três Graças” e “A Bota do Diabo” são óperas cômicas de música muito bem feitas. Nomes brilhantes como Arthur Azevedo, Valentim Magalhães, Ozório Duque Estrada, Oscar Pederneiras, Felinto de Almeida, Cardoso de Menezes, Antonio Quintiliano, Avelino de Andrade e muitos outros assinaram libretos com partitura de Chiquinha Gonzaga.

Muito nome consagrado entrou nos meios artísticos sob a influência da maestrina. Viriato Corrêa confessou publicamente que “em literatura teatral entrei guiado por sua mão generosa”. Foi em “A Sertaneja”, alias batizada por Chiquinha que não gostara do título apresentado para a peça: “A Mulata”. No dia da estréia a linda música de Chiquinha muito concorreu para os aplausos recebidos por Viriato que ao terminar o primeiro ato exclamou radiante: - Estou feito! “A Jurity” principalmente e “Maria” depois foram peças aplaudidíssimas.

Vicente Celestino simples corista, por imposição de Chiquinha estreou como cantor em “A Jurity”. A sua extensa voz de tenor assegurou-lhe a popularidade que goza. Procópio, que se inciara como ator de teatros suburbanos, encontrou em “A Jurity” e sob a influência de Chiquinha a sua primeira escalada para a fama que hoje desfruta. Raul Pederneiras referindo-se à música de Chiquinha afirmou que “fora a salvação de muita peça”.

Chiquinha foi a verdadeira mascote das peças teatrais. Muito franca, arrebatada até, era no entanto bondosa e prestativa. Mas não musicava peça que não lhe agradasse.

Envelheceu no teatro. Da memória da cidade não se apagará a figura simpática daquela velhinha que ao lado do filho extremoso comparecia a todas as estréias teatrais. No coração dos artistas brasileiros há de haver sempre uma homenagem de saudade para aquela que foi a “Vovó dos Artistas”.

Fonte: Palcos e Salões - Colectaneas Rabello, 1924, Vol 1Alma Cantante do Brasil

A história da música do nosso povo nos três primeiros séculos da vida brasileira permanece desconhecida. Os estudiosos nada desvendaram além dos meados do século XIX, quando se notam as primeiras tentativas de nacionalização da nossa música popular. Sente-se, porém, que a música do nosso povo, quase nativa, é bela entre as mais belas. A riqueza melódica e a variabilidade rítmica de todo o Brasil, ressoa na Cidade Maravilhosa onde se vão desdobrando as páginas brilhantes da sua história sonora.

Depois de Calado, primeiro professor de flauta do antigo Instituto Nacional de Música e maior flautista do segundo Império, segue-se a figura admirável de Chiquinha Gonzaga, grande compositora popular e primeira maestrina brasileira. A obra artístico-musical de Chiquinha Gonzaga é a própria alma brasileira a cantar, o esplendor da terra. A inspiração inata e pura da grande compositora, venceu preconceitos, calcou interesses e irreprimível, explodiu surpreendente, nova, estranha, mas, genuinamente nacional. A forma simples de expandir essa inspiração, não tem a ingenuidade espontânea do seresteiro, nem está presa a exigências técnicas de harmonização, possui entretanto uma e outra cousa.

A música de Chiquinha Gonzaga é uma verdadeira conciliação entre a “giria” sonora carioca e as produções de conservatório. Os recursos harmônicos da grande musicista, de uma originalidade encantadora resultaram composições admiráveis onde há som, perfume, ardência e sobre tudo sabor de cousa gostosa. O ritmo travesso vagueia irrequieto do terno ao romântico, ao quase lírico, do descritivo, do audacioso ao apoteótico, mas sempre sinceramente brasileiro. Não é cópia nem adaptação estrangeira, é o Brasil que canta a ardência do sol, o lirismo da lua, o mistério das florestas, os soluções das águas, o Brasil forte e ardente que gargalha ruidoso as suas alegrias e as suas festas.

Chiquinha Gonzaga que a 17 de Outubro completaria o seu 92º aniversário, deixou-nos preciosa obra musical. Mais de 2.000 composições sobre todos os gêneros, do sacro ao brejeiro, todas elas originais, únicas e 77 partituras teatrais de peças dos mais consagrados autores nacionais e portugueses, estando inéditas apenas cinco.

Durante 50 anos trabalhou pelo engrandecimento musical e teatral do seu povo. As suas composições são a síntese das nossas sonoridades tropicais, atravessaram o Atlântico, alegraram Paris, popularizaram-se em Portugal, chegaram à América do Norte e foram plagiadas em Berlim, segundo notícias de então.

Atrahente, a polca que marcou o seu primeiro sucesso, uma obra prima, Linda Morena, Menina Faceira, Carioca, Sultana, Saudade, Tupan, Sonhando, Sabiá da Mata, Radiante, Borboleta, Paraguassu, Cecy, Guayanazes, Jandira, Tapuia, Lua Branca e quantas outras que enriquecem o populário musical brasileiro. Nunca será esquecido o famoso “Ó Abre Alas” – fanfarra de sua autoria, que, há perto de cinqüenta anos, vem servindo de toque de reunir aos carnavalescos cariocas. Ainda hoje, mal soam os primeiros guizos da folia o povo canta alegremente:

Ó abre alas!
Que eu quero passar
Eu sou da Lyra
Não posso negar

“P´ra cera do Santíssimo”, um outro grande sucesso, foi uma cançoneta cuja música, escrita por Chiquinha, era uma sátira melodiosa aos “irmãos de opa”. “Forrobodó”, revista de costumes cariocas, de Luiz Peixoto e Carlos Bittencourt, alcançou mais de mil representações com o seu baile na Cidade Nova. Dos seus tangos, nenhum foi tão famoso como o “Corta-jaca”. Essa dança sertaneja de origem afro-brasileira, sugerira a Chiquinha o tango maxixado “Gaúcho”. Tão ruidoso e prolongado foi o sucesso dessa música, que Nair de Teffé, a apreciada caricaturista Rian – esposa do então Presidente da República, incluiu esse tango no programa da última recepção presidencial, de 1914. O caso inédito na vida social do Rio, comentadíssimo, resultou na ascensão da nossa música popular às mais altas camadas da nossa sociedade.

Essa vitória foi devida à música fascinante de Chiquinha Gonzaga. A grande compositora não foi apenas a primeira maestrina brasileira, foi também a primeira mulher que escreveu música para teatro. Compondo tangos buliçosos, maxixes provocantes, partituras jocosas, passou toda a sua vida. Figura queridíssima nas rodas teatrais, foi a “Vóvó” dos artistas e assim conseguiu bater o “record” de compositora, escrevendo dois anos antes de partir para sempre, aos 85 anos de idade, a sua última partitura para a peça sertaneja de Viriato Corrêa – Maria.

Chiquinha Gonzaga que prodigamente esbanjou a sua inspiração e só tinha como riqueza a pauta e as sete notas musicais, morreu pobre. Alegre, simples e boa, foi a “Querida por todos”, como a chamou Calado ao oferecer-lhe uma polca, com esse título.

Na história do Rio antigo, Chiquinha tem um lugar destacado de mulher galante, de artista querida e de patriota sincera. Nas rodas elegantes sua figura fez época. Os fatos repetem-se.
Carmem Miranda, a famosa intérprete da moderna música popular brasileira, lançou em New York a moda do torço das baianas. Chiquinha Gonzaga, na mocidade, ideou graciosa maneira de dispor um grande lenço de seda sobre os seus cabelos ondeados e negros. Em vão pretenderam imita-la. Impossível. Ela ajeitava o lenço sobre a cabeça, no momento e com uma facilidade incrível. Invejada, contam que certa vez, uma dama de tradicional família do Império, passando por Chiquinha, na Rua do Ouvidor, num repelão audacioso, arrancou-lhe o lenço. Chiquinha não se mostrou agastada. Rápida, apanhou-o do chão, sacudiu-o, arrumou-o novamente ante o olhar arrogante da invejosa. Restaurado o adorno com uma simples palavra rematou o incidente – Feia! Foi coberta de ridículo que a tal dama seguiu sob a galhofa dos transeuntes.

Inteligente, culta e bonita, tudo lhe parecia sorrir, no entanto Chiquinha sofreu e chorou! Foi a sua confissão, quando determinou o epitáfio: - Sofreu e Chorou! Sofrendo e chorando conseguiu alegrar durante tantos anos o povo da sua terra e estancar as lágrimas dos negros quando ao lado de Patrocínio, Lopes Trovão e outros abolicionistas, trabalhou pela liberdade dos escravos, compondo, interpretando e vendendo suas músicas em benefício da confederação Abolicionista. Já velhinha, tomou a iniciativa do mausoléu de Francisco Manoel, autor do Hino Nacional Brasileiro, erigido no Cemitério de Catumby.

Nenhum título melhor cabe a essa grande brasileira, que o conferido pelo almirante Fournier, comandante da Divisão Naval Francesa do Atlântico, ao oferecer-lhe uma linda medalha bizantina – “Alma cantante do Brasil”.

Mariza Lira (2)

Notas:

(1) transcrição do texto original, escrito por Mariza Lira, feita por Jayme M. L. Filho em 22/05/2007.
(2)
Primeira biógrafa de Chiquinha. Musicóloga. Folclorista. Jornalista. Formada pela Escola Normal do Rio de Janeiro (na época Distrito Federal). Dirigiu a Escola Técnica Secundária do Rio de Janeiro. Foi membro da Comissão Nacional de Folclore (vide Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira).

Fonte do texto e das imagens: "Palcos e Salões - Colectaneas Rabello, 1924, Vol 1" (apresenta, sem critérios definidos, recortes de periódicos brasileiros da década de 1920 que tratam da programação cultural e de atores brasileiros). Biblioteca Pública do Estado do Rio de Janeiro – BIPERJ.

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